Publicado em: 18 de março de 2020 12h03min / Atualizado em: 18 de março de 2020 12h03min
Orlando, Estados Unidos, 2016. Um massacre a tiros em uma boate voltada ao público LGBT tira a vida de 49 pessoas e deixa outras 53 feridas. Momentos depois, ecoa o discurso de uma pessoa pública, que diz: “Como nós testemunhamos agora o maior ataque a tiros na história americana, não posso evitar de sentir que esse nível de ódio, como todos os crimes de preconceito, é um ataque contra a própria humanidade. Isso é um ataque a todos”. A pessoa, depois, cita o nome de cada uma das 49 vítimas. O relato, emocionado, poderia ser de qualquer autoridade política. Mas não. Quem o fez foi Stefani Joanne Angelina Germanotta, cantora pop conhecida pela alcunha de Lady Gaga.
O discurso emitido pela artista talvez seja uma das formas mais claras de exemplificar como a cultura popular adere-se aos problemas sociais e os faz mais visíveis e acessíveis para a grande população. Claro, não é de hoje. Uma das obras mais emblemáticas de Pablo Picasso, o quadro intitulado “Guernica” refletiu o bombardeio à cidade de mesmo nome durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). No Brasil, em meados de 1974, Elis Regina entoava a canção “O mestre-sala dos mares”, de João Bosco e Aldir Blanc, que foi censurada no período da ditadura: “Salve o navegante negro, que tem por monumento as pedras pisadas do cais”. Assim, ao longo da História, são diversos os momentos em que a arte mistura-se aos tensionamentos de seu tempo.
A música pop tem o poder de chegar ao público pela linguagem acessível e altamente difundida pelos meios de comunicação. Com o atrativo visual, em que imperam muitas cores e brilhos, ela congrega crianças, jovens e adultos. Conforme o professor Fábio Feltrin de Souza, docente da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Erechim, milhões de pessoas ouvem e consomem as canções das divas pop. “São fãs que constroem suas identidades e seus grupos a partir delas, e isso tem um impacto vigoroso na forma como as relações sociais estão”, afirma.
Fábio é professor no curso de Licenciatura em História da UFFS. É bacharel, licenciado, mestre e doutor na área, com três pós-doutorados - na Unicamp, na Stony Brook University (EUA) e na Universidade Nova de Lisboa (Portugal). Sua trajetória acadêmica inclui pesquisas, artigos e livros ancorados nos Estudos Culturais. Já escreveu sobre racismo, sexualidade, historiografia, arte, literatura, identidades, gênero, cultura, linguagens e subjetividades. No que tange à música, sua dissertação de mestrado versou sobre a relação entre o rock brasileiro e uma nova experiência com o tempo.
Professor Fábio Feltrin de Souza: transformações sociais necessitam novas abordagens em sala de aula
Foi sabendo de todo o interesse do professor por essas temáticas que um grupo de estudantes propôs ao docente um desafio: desenvolver o plano de estudos de uma disciplina optativa do curso de História relacionando os comportamentos, posturas e bandeiras defendidas pelas cantoras pop com o referencial teórico que dá suporte às reflexões acadêmicas do docente e do próprio curso. O desafio foi aceito. “Resolvi aceitar justamente por compreender a importância de produzir um diálogo cada vez mais orgânico entre o conhecimento acadêmico e o cotidiano dos estudantes”, conta Fábio.
Nasceu assim uma proposta para a disciplina optativa de Seminário Temático em História III. O título chamou atenção: “Divas Pop e a subversão das identidades”. A iniciativa de abordar aspectos das ciências humanas a partir da cultura pop deu tão certo que mais de 30 acadêmicos se matricularam para as aulas.
Para o professor, é importante tratar o fenômeno cultural pop à luz de uma teoria social clássica. “Todos os artistas elencados como ponto de partida dos debates teóricos romperam com paradigmas comportamentais e alertam para temas urgentes das sociedades ocidentais, principalmente a brasileira”, pontua. “Por isso a cultura pop é um grande vetor de construção e desconstrução de identidades, com suas potências e limites mercadológicos também”.
O plano de ensino da disciplina é colorido. Além de Lady Gaga, tem Cyndi Lauper, Rihanna, Beyoncé, Linn da Quebrada, Pabllo Vittar e, claro, Madonna. As temáticas trabalhadas pelo professor são diversas: incluem a negritude, o feminismo, a misoginia, LGBTfobia, entre outros assuntos atuais.
“O Brasil não só teve quase 400 anos de escravidão, como foi o último país do mundo a aboli-la, e seus efeitos são dramaticamente percebidos ainda hoje, principalmente no que tange à violência contra negros”, destaca o professor Fábio, pontuando sobre uma das temáticas abordadas na disciplina.
“Nosso país tem uma das mais altas taxas de feminicídio e estupro de mulheres do mundo. Do mesmo modo, é o país que mais mata LGBTs. Trago essas informações para mostrar a importância de enfrentarmos esses temas à luz das teorias sociais contemporâneas, fortemente reconhecidas como as mais apropriadas para lidar com essas temáticas já consagradas nos Estudos Culturais, na História, na Sociologia, na Linguística e na Teoria Literária. Nossos alunos vão ler um vasto número de textos e livros clássicos dessas abordagens e que são estudados por pesquisadores e estudantes em várias universidades do Brasil e do mundo”, destaca.
Lady Gaga, Beyoncé, Madonna e Pabllo Vittar: música e discurso na cultura pop para a visibilidade dos silenciamentos
Números recentes mostram que os casos de feminicídios aumentaram 7,3% no Brasil – uma realidade que precisa ser tratada nos bancos universitários para ensinar os futuros professores a lidar melhor com essas temáticas em sala de aula. E se para tratar deste triste cenário a música pode ser uma ferramenta didática poderosa, a pergunta é: por que não?
A música, por si só, já contém aspectos políticos. Beyoncé, na canção “Freedom”, fala sobre a liberdade negra para além da escravidão, sobre negros serem livres para viver suas histórias apesar do racismo e da discriminação. Mas o engajamento vai muito além dos versos. No ápice do HIV nos Estados Unidos, Madonna arrecadou fundos para pesquisas e protestou publicamente sobre o descaso, a segregação e o preconceito para com os infectados.
“Desde a década de 1960 o mundo vem passando por grandes e aceleradas transformações sociais, culturais e econômicas. Assistimos a emergência de novos movimentos sociais, lutas por direitos civis, lutas por mais democracia e o processo de descolonização das Áfricas”, explica o professor Fábio. “Tudo isso impactou o modo como as Ciências Humanas tratam seus objetos e a História, claro, não ficou imune. Digo isso pra lembrar que, hoje, nenhum profissional minimamente sério da área compreende nossa profissão como a narrativa dos grandes feitos, dos grandes homens.”
Assim, conforme o docente, a temática da História das mulheres, das relações entre os gêneros, das relações étnico-raciais e a aproximação cada vez mais forte com os debates públicos entrou de maneira irreversível e decisiva na agenda dos historiadores e na formação de professores.
“A disciplina visa, também, capacitar os futuros professores para lidarem com temas cotidianos e urgentes como o machismo, o feminicídio, a homofobia, o racismo e as lutas por mais direitos e justiças, a partir deste artefato cultural que é a música. Não há como pensar um professor de História que não consiga lidar com essas temáticas”, diz Fábio.
A disciplina optativa de Seminário Temático em História III é um dos mais de 30 componentes curriculares optativos disponíveis no curso da UFFS. Os seminários possibilitam ao professor ofertar um curso mais direcionado às suas pesquisas e leituras recentes, ou desenvolver temáticas contemporâneas e de relevância social.
Beyoncé em cena do vídeo da música "Sorry": corpo da mulher negra foi um dos temas do álbum "Lemonade"
Com a suspensão das atividades acadêmicas na UFFS em virtude do coronavírus, os alunos matriculados na disciplina aguardam o retorno das aulas para continuarem os estudos, como é o caso do acadêmico Lucas Gabriel Buffon, um dos vários entusiastas das aulas ministradas pelo professor Fábio.
“Acredito que a disciplina está proporcionando uma reflexão da História do tempo presente e necessária”, diz o aluno. “Ao olharmos a História como uma ciência do presente percebemos que as divas pop fazem parte do cotidiano das pessoas. A disciplina representa uma resposta acadêmica que concilia cultura pop e teoria como forma de enfrentamento aos altos índices de LGBTfobia, feminicídio e racismo.”
Lucas acredita que as divas pop que embasam o plano de ensino, sempre em seu repertório audiovisual e de ativismo político, abraçaram as pautas da diferença. “Convém agora à universidade, de forma responsável e ética, problematizar academicamente essas artistas, amparada em textos queer, feministas, decoloniais e pós-coloniais”, fala.
Para o professor Fábio, o diálogo entre a música pop e os conteúdos curriculares é uma forma de despertar o interesse dos acadêmicos para as temáticas do curso, tornando o processo de ensino ainda mais atraente. “Um colega disse que uma das maiores dificuldades da docência do magistério superior é falar a mesma língua que nossos estudantes e mostrar que o conhecimento abstrato das ciências é vivenciado por eles no seu cotidiano. O que pretendo com essa disciplina, principalmente depois do desafio lançado pelos meus alunos, foi tomar um objeto cultural absolutamente conhecido (por isso o chamamos de pop) e examiná-lo à luz de teorias e conceitos complexos que estruturam o modo como as Ciências Humanas produzem conhecimento”, diz o docente.
Para o acadêmico Adriano Bertolassi, os temas tratados refletem novas perspectivas para o campo da História. “A disciplina favorece a compreensão de uma dinâmica de exclusão e aversão a indivíduos que não correspondem aos papéis que a sociedade impõe”, diz o aluno.
“É notório que a nossa formação se tornaria fraca e insuficiente sem tratar de muitas dessas discussões. Formar um professor crítico e produtor de conhecimento em pleno século XXI sem abordar essas temáticas seria quase como um silenciamento, ainda maior, dessas comunidades [negra, LGBT, etc]. Comunidades que estão avançando gradualmente no cenário social e que geram um grande debate sobre repensar a estruturação da sociedade fora da chave misógina e antiquada de papéis de gênero que se convencionou como norma. Não falar sobre esses corpos é apagá-los do nosso processo historiográfico e tirar deles a sua própria história. Seria o nosso retrocesso como sociedade”, finaliza o acadêmico da UFFS.
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